A cidade está bem iluminada. É sempre assim no período natalino, ou “papainoelino”? A prefeitura capricha graças ao IPTU que cada cidadão paga. A população merece. Neste frenesi assumo a ansiedade de olhar vitrines coloridas e luminosas. Acompanho o ritmo das luzes com os olhos. Nessa inquietude segue também o pensamento, na indecisão de saber qual é o mais bonito ou o mais intenso dos arranjos luminosos, o quê comprar, qual o presente mais interessante, o quê vai agradar ao presenteado.
Num lugar distante do meu país, um menino que sai de casa se depara com um muro gigantesco em altura e comprimento. Tem de contorná-lo. Irá até o posto de fronteira, onde mesmo criança, terá revistada toda a roupa, o visto para transitar, a bolsa e todo o conteúdo. Poderá ouvir insultos, mas calará. Irá para o outro lado do mesmo bairro separado pelo muro.
Eu adulto, a milhares de quilômetros, cá me faço criança percorrendo as pequenas distâncias entre um centro de compra e outro, a adquirir os presentes para os pequeninos da família, que são muitos. A satisfação da compra feita, o brilho no olhar, o sorriso de agradecimento, o cumprimento festivo e o expresso desejo de bom natal e feliz ano novo fazem o burburinho nas lojas e nos corredores desses centros.
Ele, o menino cujo nome hipotético poderá ser Mustafá terá de enfrentar o sol e a longa distância naquela terra tão disputada, de nomes familiares, tamanha a repetição pela imprensa: Faixa de Gaza, Hebron, Jericó... É o território Palestino de aridez aguda e batalhas fratricidas entre judeus e árabes pela sua posse. Povos fabulosos, originalmente praticamente irmãos, de grandeza e sabedoria invejáveis, isto provado ao longo da história.
Passo agora numa das praças principais da minha cidade, onde há um grande presépio. É a mais expressiva lembrança do nascimento de outro menino, na cidade de Belém, que revolucionou grande parte do mundo com sua mensagem singular e atemporal: paz e amor entre os homens, num período de ocupação opressora do antigo império romano, naquela mesma região, onde nasceu e mora o menino Mustafá.
De família cristã, Mustafá se sente agraciado pelo milagre de estar vivo, até ali, e poder se locomover até a casa do avô em terras onde o credo maior é em Alá e Jeová. O cristianismo ali é secundário e o povo palestino é odiado pelos judeus e rejeitado pelos próprios árabes, largados nos campo de refugiados. Os palestinos são estrangeiros no que poderia ser oficialmente seu país, pois, se constituíram palestinos antes da chegada dos otomanos, dos egípcios contemporâneos e dos ingleses, o povo mais estrangeiro que já ocupou aquela terra, e apoiou diretamente os judeus a se estabelecerem violentamente ali, sob o mesmo argumento da ancestralidade que os palestinos invocam para permanecerem também.
Vejo o presépio; é estático; uma representação plástica do momento de adoração dos chamados Reis Magos, após o nascimento de Cristo, um judeu pobre, filho de um marceneiro e uma mulher, na compreensão de hoje: uma jovem dona-de-casa. O casal se deslocou da sua moradia, distante, para atender a uma ordem do império romano. Sempre os impérios a darem ordem.
Há quem lembre que os judeus deram ao mundo dois grandes homens: Cristo e Marx, mas os judeus não são nem cristãos nem marxistas. O povo árabe condicionou o ocidente, então bárbaro até o século XV, à civilização racional que lhe faltava para desembocar na idade moderna. O povo judeu (Israelita), não reconhece em Cristo o salvador prometido, logo, não seria Cristo o filho de Jeová (Deus), que salvaria o povo dos seus martírios: êxodo, escravidão e massacre; o Islamita (a maioria árabe), não reconhece em Cristo o filho de Alá (Deus), mas, apenas um profeta, sendo Maomé o mais importante.
Observo que, enquanto o presépio é inanimado e atrai mais as senhoras comovidas e poucos homens adultos curiosos, distante apenas um quarteirão dali, a mensagem mais intensa e movimentada é apregoada e eu me sinto novamente impulsionado. Tem a ver com que eu estou fazendo: consumindo. O Papai Noel num trono, bem no cruzamento das duas ruas para pedestres mais movimentadas, estimula a imaginação das crianças que lhe rodeiam e encorajam os adultos a fazerem a gastança. Inebriado pelo clima papainoelino, esqueço os limites do orçamento doméstico e mando ver...
Quando os ingleses saíram da Palestina as Nações Unidas articularam a divisão do território em dois Estados, um judeu e um árabe proporcionais à população. Tanto árabes quanto os judeus, que já haviam feito vários acampamentos e detonado muitos árabes, não concordaram. Começaram as guerras. O ódio tem sido alimentado com as intromissões estrangeiras que, conforme seus interesses econômicos na região fornecem armas e todo o apoio logístico a ambos os lados, para ataques mútuos. Quem mais faz isso? As grandes nações cristãs. Nestas guerras, marcadas pela incapacidade de convivência, muitos Mustafás não chegaram ao seu destino.
O ocidente cristão diz querer a paz para construir os dois Estados independentes. Como o amor ao deus-dinheiro é maior do que o desejo da paz cristã entre os homens, a referência a Cristo pelos promotores da paz continuará sendo apenas um presépio. Os conflitos continuarão a abastecer a indústria dinâmica, histérica, odiosa, mas, lucrativa da guerra. O papai Noel dos magnatas das armas é sempre generoso. Pelas facilidades tecnológicas atuais há sempre quem saque dinheiro eletrônico, que já não é seu, para gastar mais do que pode. O estrago é o esperado. Claro, onde papai Noel é só animação, a paz cristã é estática e enfadonha.
Agora, cá entre nós, depois de me enfeitiçarem com as luzes do espírito “papainoelino” e gastar o que eu não tinha, quero ver quem vai me ajudar a pagar o novo IPTU que vem por aí. Bem, eu preciso ter paz!